Todos os dias faça chuva ou sol está na porta da Igreja, sentado no chão ou abrigado debaixo dos portais.
Dizem que em tempos foi um homem bonito, agora não se percebe, sujo, confuso e agressivo, poucos se aproximam.
O que o destaca de outros é o seu cão, a única vez que a voz dele sai quase meiga é quando fala com o Urso.
Perco-me a imaginar os porquês da vida, da vida deste homem que chegou ao fundo, tão fundo que é difícil imaginar um regresso, mas o amor por aquele animal é algo que comove, vejo-o a dar comer ao Urso do pouco que consegue, pois a agressividade afasta quem tem boas intenções.
Ao contrário do que seria"normal" o cão está limpo e parece saudável.
É alguém que já nada tem, tudo perdeu, no entanto o amor por um animal continua intacto.
Luís tem 43 anos e saiu de casa com 16. Eram muitos irmãos numa aldeia deste País, passou a infância a trabalhar no campo, pouca comida para tanta bocas.
Veio para Lisboa trabalhar nas obras e conheceu a heroína.
A partir daí foi sempre a descer, conta a infância como se de uma historia de terror se trata-se.
Em miúdo viu o melhor amigo morrer afogado, a mãe a ser espancada e sem nada poder fazer. Mantêm contacto com a mãe, o pai nem quer saber.
Hoje, depois de uma tentativa frustrada de desintoxicação, há seis anos tentou uma segunda e ficou limpo. Acredita que é de vez, conseguiu abrigo na AMI do bairro. Tem onde dormir.
Ruben, vive no Terreiro do Passo, auto-intitula-se o mais antigo sem abrigo da zona, rosto enrugado, barba amarelada e olhar de quem vive há muito neste mundo.
Vivia nas arcadas, mas teve de "mudar-se" na altura das obras da mesma, agora vive "lá em cima" como refere.
Entre sussurros uns vão dizendo que o Ruben é rico, tem uma herdade em Portimão e que o irmão quer partilhar, quer que ele saia das ruas, quer que receba a sua parte.
Depois, diz quem lida com sem abrigos diariamente, "não podemos acreditar em tudo o que eles nos contam".
Sem se saber a verdade, pouco importa, Ruben é o sem abrigo mais antigo do Terreiro do Passo.
Paulo é um caso feliz, no meio do caos, da vida dura, acabou bem esta história e merece ser contada apesar de já ter uns anos.
O vício do álcool perturbou-lhe a memória. Não consegue situar o tempo. Não se lembra de datas. Também não se recorda de nomes. Faz um esforço.
Com 7 anos fugiu de casa, sem ninguém que o procurasse encontrou Ana, que foi "mãe" uma sem abrigo também e cega, aconchegou-o e comiam os dois, sandes ou bolos que os patrões das pastelarias davam a Paulo a criança. Ana morreu, Paulo voltou a ficar só.
Ao fim de uns anos a mãe procurou-o, não o podia levar para casa, pois o padrasto não deixava, prometeu à mãe que ia lutar.
Aos 14 anos nos Restauradores, juntou-se a um grupo que tinha como lema beber para esquecer, ele aderiu, e bebeu, bebeu durante 13 anos e nunca esqueceu.
De banho tomado nos balneários sempre que podia, roupas das associações, era um alvo fácil, para os companheiros que o viam como um pedinte de sucesso, fugiu.
O novo poiso, Santa Apolónia, lá fez amizades, andava de fato e gravata sempre, mas sempre bêbedo também.
Até que ficou muito doente, levado pela Comunidade Vida e Paz ficou internado 2 meses, fez uma desintoxicação e ficou na Comunidade, começou a viver, tinha onde dormir e comer, livre do vicio.
Mas numa pneumonia teve novo revés, diagnosticaram-lhe o vírus da sida. "Na rua, também havia mulheres e eu estive com elas." Não se deu por vencido.
Conheceu Filipa numa acção de voluntariado e apaixonaram-se, casaram, vivem numa casa camarária e ele trabalha, são felizes.
Esta é história de uma senhora que está na rua Augusta todos os dias com os seus 3 cães.
Uma vida com as voltas trocadas, uma vida desfeita, que nos impressiona e faz-nos recordar que a vida muda, em segundos. Achei que merecia destaque aqui no blog, afinal é uma história de vida.
Com quase 60 anos, recebe a noticia que o filho, nora e neto num acidente, morreram, um camião roubado, roubou-lhe os bens mais preciosos.
Com casa própria muito velha, e sem ter como pagar o IMI e despesas da casa, sem ajudas estatais, a não ser dizerem-lhe para vender a casa, o único bem e onde reside, pede esmolas.
O dinheiro que arrecada em esmolas é sempre para comida para os quatro, quando não chega, passa ela fome.
Tem na carteira a foto dela em nova com o filho, era professora.
No ginásio sentadas lado a lado nas bicicletas, ela pedala, eu estou parada, a ofegar.
Diz-me ela - Mexa-se, vem para o ginásio descansar?
Eu entre o incrédula e a falta de ar respondo:
- Já pedalei bastante hoje, uns 2 km pelo menos.
Ela desata a rir e diz:
-Eu tenho o dobro da sua idade, já pedalei 5 km e antes de sair de casa, arrumei, lavei e passei a ferro, e ainda adiantei o almoço veja lá, as mulheres hoje em dia já não são o que eram.
Sem saber o que responder digo, - não é os homens?
Diz ela com ar quase indignado:
-O meu homem é bem de antigamente, oh se é, aprendi tudo, à força mas aprendi, muita porrada eu levei, mas agora compensa, sei fazer tudo.
- E acha que isso é isso pode chamar-se recompensa?
-Claro que sim, em casa do meus pais levava porrada, mal comia, mal dormia, com o meu homem pelo menos nunca me faltou nada.
- Porrada inclusive? (perguntei eu completamente embasbacada).
- Deixe lá, ao menos aprendi, fiz-me mulher, criei os filhos e agora ele já nem porrada pode dar, mas leva, cá se faz cá se paga. Tenho uma rica vida, venho ao ginásio e tudo vê?
- Vejo mas não compreendo.
- Pois, sabe o que lhe digo, quem está no convento é que sabe o que vai lá dentro.
E foi-se embora, eu fiquei lá na bicicleta, parada.